Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

A subordinação da esquerda brasileira ao neoliberalismo e o abandono da Teoria da Dependência. Entrevista especial com Carlos Eduardo Martins (por Instituto Humanitas Unisinos)

Por Patricia Fachin para a Revista IHU On-Line

Com origem nos anos 1960, as “Teorias da Dependência surgiram como crítica às teses nacionais-desenvolvimentistas que apontavam que, com a industrialização, Brasil e América Latina superariam seus problemas de subdesenvolvimento, desemprego, instabilidade política e falta de autonomia, criando formações sociais com soberania tecnológica, consumo de massas, predomínio das camadas médias e estabilidade política democrática”, resume o sociólogo Carlos Eduardo Martins à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Segundo Martins, uma das propostas da Teoria da Dependência era demonstrar que, ao contrário do que imaginavam os teóricos da Cepal e os do Partido Comunista, “não havia uma burguesia industrial latino-americana que buscasse a soberania produtiva e tecnológica contra o capital estrangeiro, o fim da polarização centro e periferia, a erradicação do latifúndio e das estruturas primário-exportadoras; e nem havia uma divisão internacional do trabalho estagnada entre centros industriais e periferias exportadoras de recursos naturais”. Ao contrário, segundo o entendimento da Teoria da Dependência, “a economia mundial era dinâmica e o capital estrangeiro no pós-guerra, sob hegemonia dos Estados Unidos, liderava os processos de industrialização na periferia, subordinava o capital produtivo local, que buscava a este se associar para desfrutar de condição monopólica em situação de sócio menor”.

Amplamente influente no pensamento social dos países latino-americanos, especialmente no Brasil, a Teoria da Dependência foi expandida por quatro fontes distintas: à esquerda, pelo pensamento neogramsciano, ao centro, pelo pensamento neodesenvolvimentista, à direita, pelo neoliberalismo, e oscilando entre o centro e a direita, a partir de uma perspectiva weberiana da dependência.

Na prática, de acordo com Martins, ela seguiu ao menos um viés à direita, com Fernando Henrique Cardoso, e outro à esquerda, nas propostas de “construção do socialismo ou de uma economia capitalista sob forte regulação estatal e controle popular na periferia”. Entre as consequências dessas abordagens, avalia, houve uma “derrota da esquerda brasileira” por conta do seu “abandono” de um “programa estratégico soberano e popular enquanto a direita se une em torno a um programa de transformação neoliberal da economia e do Estado numa ditadura política rentista e privatista do grande capital”. E adverte: “Se formos perguntar às esquerdas qual é o seu programa estratégico para o Estado e para a economia do Brasil, dificilmente haverá consenso, ou predominará uma resposta sem subordinação ou fortes concessões à ideologia neoliberal. O resultado é um brutal paradoxo: temos um dos períodos mais medíocres e inexpressivos do capitalismo no Brasil quanto aos seus resultados econômicos e políticos e, simultaneamente, uma rendição quase que completa de nossas esquerdas a este”.

Na entrevista a seguir, Martins expõe a proposta teórica de Ruy Mauro Marini, um dos principais formuladores da teoria da dependência, que “contribuiu para renovar amplamente o marxismo latino-americano e mundial”, com a obra Dialética da dependência, de 1973, mas “só publicada no Brasil em 2000, após a sua morte”.

Carlos Eduardo Martins é graduado em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUCRJ, mestre em Administração pela Fundação Getúlio Vargas – RJ e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP. Atualmente leciona no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, é coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-hegemonia – LEHC e pesquisador do GT de Integração Regional e do GT de Estudos sobre Estados Unidos do CLACSO. É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011), publicado pela editora Boitempo.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quem foi Ruy Mauro Marini? Pode apresentar, de modo geral, a trajetória intelectual dele no Brasil e na América Latina?

Carlos Eduardo Martins – Ruy Mauro Marini foi um dos mais destacados intelectuais latino-americanos e articulou o trabalho teórico à militância política. Foi um dos principais formuladores da teoria da dependência e contribuiu para renovar amplamente o marxismo latino-americano e mundial. Professor da UNB e dirigente da Organização Revolucionária Marxista Política Operária – POLOP, apontou os limites da democracia no capitalismo brasileiro e teve seu trabalho interrompido pelo golpe de 1964, quando foi preso e torturado no Centro de Informações da Marinha – Cenimar. Exilado no México e no Chile, deu continuidade a seus trabalhos no Centro de Estudios Socio-Económicos – CESO, onde formulou sua obra mais famosa, Dialética da dependência (1973), só publicada no Brasil em 2000, após a sua morte. Perseguido pela ditadura de Pinochet, por suas ideias e sua atuação como dirigente do MIR, exilou-se no México, lecionando na Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas da UNAM e durante breve período no Instituto Max Planck na Alemanha.
De volta ao Brasil, com a anistia política, apenas pode reintegrar-se plenamente à UNB em 1987, quando aquela se estendeu ao campo profissional. Em meados dos anos 1990, voltou ao México e dirigiu o Centro de Estudos Latino-Americanos – CELA da UNAM, quando coordenou um amplo balanço do pensamento latino-americano que resultou na publicação de quatro livros e três antologias sobre o tema. Morreu em 1997 aos 65 anos de câncer linfático, deixando obra importante, agora, quase toda disponibilizada em sítio eletrônico na internet.

IHU On-Line – O que é a Teoria da Dependência? Como a Teoria da Dependência foi discutida no país entre os anos 1960 e 70 à luz do marxismo? Que problemas os intelectuais da época procuraram responder com essa teoria?

Carlos Eduardo Martins – As Teorias da Dependência surgiram nos anos 1960 como crítica às teses nacionais-desenvolvimentistas que apontavam que, com a industrialização, Brasil e América Latina superariam seus problemas de subdesenvolvimento, desemprego, instabilidade política e falta de autonomia, criando formações sociais com soberania tecnológica, consumo de massas, predomínio das camadas médias e estabilidade política democrática. Estas teses surgiram de duas fontes nos anos 1950 e 60: da Comissão Econômica para a América Latina – Cepal, principalmente, por meio das obras de Raul Prebisch e Celso Furtado, e das teses dos Partidos Comunistas.

Para a Cepal, tratar-se-ia de impulsionar a industrialização pela via de forte planejamento e coordenação estatal mediante a estratégia de substituição de importações. O Estado manejaria os excedentes obtidos com a agroexportação e os transferiria ao setor industrial para impulsionar a importação de maquinarias e equipamentos protegendo o mercado interno contra a concorrência externa. Este processo atuaria em três fases, referentes à internalização da produção de bens de consumo leves, de bens de consumo duráveis e de bens de capital, quando então se alcançaria a autonomia tecnológica.

Ao Estado caberia, além do planejamento e da coordenação macroeconômica, intervir diretamente quando necessário no setor de infraestrutura, produzindo bens e serviços a taxas de lucro negativas para subsidiar o capital industrial e a empresa privada no seu conjunto. O capital estrangeiro era visto como um ator que poderia oferecer uma contribuição marginal a este processo, não se interessando em investir na industrialização da periferia, mas apenas em suas estruturas exportadoras.

Para os Partidos Comunistas, tratar-se-ia de formar uma aliança de classes entre a classe operária, o campesinato e as burguesias industriais nascentes, com o objetivo de realizar uma revolução democrático-burguesa contra o imperialismo e o latifúndio feudal. Tal revolução democrático-burguesa imporia a reforma agrária, o desenvolvimento industrial e o mercado de massas contra a burguesia compradora nacional e estrangeira e seus aliados no campo.

Resposta da Teoria da Dependência

As teorias da dependência vão mostrar que, ao contrário do que imaginavam a Cepal e os Partidos Comunistas, não havia uma burguesia industrial latino-americana que buscasse a soberania produtiva e tecnológica contra o capital estrangeiro, o fim da polarização centro e periferia, a erradicação do latifúndio e das estruturas primário-exportadoras; e nem havia uma divisão internacional do trabalho estagnada entre centros industriais e periferias exportadoras de recursos naturais.

A economia mundial era dinâmica e o capital estrangeiro no pós-guerra, sob hegemonia dos Estados Unidos, liderava os processos de industrialização na periferia, subordinava o capital produtivo local, que buscava a este se associar para desfrutar de condição monopólica em situação de sócio menor. Esta subordinação implicava na absorção da própria regulação da substituição de importações à abertura da conta capital, que se articulava com o protecionismo comercial para proteger o investimento estrangeiro contra a concorrência internacional, usando para isso o Estado nacional.

Em linhas gerais, o projeto burguês nacional-desenvolvimentista não rompia com a dependência tecnológica, nem com a estrutura produtiva agroexportadora, e levava a balança de pagamentos ao estrangulamento, ao pretender internalizar a indústria pela via das divisas geradas com as exportações, uma das razões pelas quais a reforma agrária não ganhou protagonismo neste enfoque teórico, salvo honradas exceções e situações históricas específicas, onde o petróleo podia substituir a agricultura.

Se atingiam este nível de consenso, as reflexões críticas ao nacional-desenvolvimentismo partiam de matrizes teóricas, interesses sociais e projetos políticos distintos. De um lado, surgiu uma intelectualidade paulista uspiana, de inspiração weberiana que, embora empregasse eventualmente uma linguagem marxista, buscou defender a dependência como paradigma de desenvolvimento. De outro lado, surgiu uma intelectualidade que renovou amplamente o marxismo e buscou superar a dependência, mas apontou que isto levaria necessariamente ao confronto com os setores mais dinâmicos do imperialismo e da burguesia nacional a ele associados, e implicaria em um projeto político de transição ao socialismo.

IHU On-Line – Qual foi a influência da Teoria da Dependência no pensamento de esquerda latino-americano?

Carlos Eduardo Martins – A teoria da dependência exerceu ampla influência nas ciências sociais e no pensamento social dos países latino-americanos e países centrais, ao desvelar as estruturas internas de nossos países e suas articulações internacionais. Mostrou que o capitalismo se desenvolvia no âmbito de uma economia mundial assimétrica, monopólica e competitiva, integrada por uma divisão internacional do trabalho onde se constituíam relações de poder que atravessavam os Estados, vinculando de forma específica suas classes dominantes, não se exercendo o poder nem apenas ou principalmente na relação entre eles, como supõem as abordagens anglo-saxãs mais tradicionais das teorias das relações internacionais.

Contribuiu para romper com o eurocentrismo e o nacionalismo metodológico que viam o mundo como resultado da interação entre estados autônomos, liderados por atores internos independentes, e dividiam-no entre países desenvolvidos e países atrasados, sendo aqueles o modelo de futuro dos últimos.

A teoria da dependência influenciou autores do próprio paradigma nacional-desenvolvimentista, como Celso Furtado e Raul Prebisch, aproximando-os da problemática da dependência; o pensamento anticolonialista latino-americano, ao reorientar a problemática do colonialismo interno e a sociologia da exploração em autores como Pablo Gonzalez Casanova e inspirar a filosofia da liberação de Enrique Dussel, uma das bases do pensamento decolonial contemporâneo; a antropologia e a geografia latino-americanas, inscrevendo-as na análise das macroestruturas sociais e da crítica ao capitalismo periférico e à civilização capitalista, como demonstram as obras de Darcy Ribeiro e Milton Santos; o pensamento sociológico, levando autores como Florestan Fernandes a romperem suas ilusões nacional-desenvolvimentistas, manejarem o conceito de superexploração do trabalho e introduzirem o de burguesia compósita; a formação de um pensamento geopolítico latino-americano, por meio de autores como Aña Esther Ceceña, Atilio Boron e Pedro Paez Perez, que buscam definir o conceito de integração soberana para o estabelecimento de projetos de emancipação.

A teoria marxista da dependência influenciou ainda a esquerda estadunidense e europeia, contribuindo para a formulação dos enfoques do sistema-mundo, que ganham destaque nas obras de Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi, Beverly Silver e Andre Gunder Frank.

IHU On-Line – Qual foi a abordagem feita por Ruy Mauro Marini a essa teoria?

Carlos Eduardo Martins – Ruy Mauro Marini desenvolveu conceitos chaves para a economia política da dependência como os de superexploração do trabalho e de subimperialismo. Mostrou que o capitalismo não era apenas um instrumento de produção de mais-valia, mas de apropriação de mais-valia e neste sentido superou uma leitura do capital, restrita ao livro I, para integrá-la aos livros II e III.

Diferenciou o conceito de formações sociais do de modo de produção capitalista, pois enquanto este se desenvolvia globalmente na economia mundial, aquelas se articulavam a este desenvolvimento como partes específicas desta totalidade, inscritas em Estados nacionais, e não como expressão concreta e síntese do capital em geral.

Apontou que as formações sociais submetidas por monopólio tecnológico internacional sofriam dupla transferência de mais-valia: no plano da economia mundial, por se especializarem em produtos que envolviam processos de produção abaixo da produtividade média mundial; no plano nacional, pelo fato de a produtividade estar principalmente determinada pela entrada da tecnologia estrangeira e sua apropriação pelas corporações multinacionais e o grande capital nacional, criando-se transferências de mais-valia da pequena e média burguesia ao grande capital.

Assim as formações dependentes estariam duplamente sujeitas à mais-valia extraordinária — no plano internacional e internamente — que, por estar estruturalmente vinculada à própria dinâmica do progresso técnico no capitalismo, levaria a mecanismos de compensação sobre sua classe trabalhadora. Este mecanismo de compensação é a superexploração do trabalho, por meio do qual não se paga ao trabalhador parte do valor de sua força de trabalho. Incapazes de neutralizar as transferências de mais-valia por meio da redução dos diferenciais de produtividade, as formações dependentes recorrem à redução salarial; ou à elevação da intensidade do trabalho e aumento da jornada de trabalho, sem a remuneração salarial equivalente.

Explicação para a desigualdade

A superexploração do trabalho seria, portanto, a grande explicação dos altos níveis de desigualdade, dos baixos salários, dos baixos níveis de qualificação da força de trabalho e das fortes restrições nas sociedades latino-americanas a democracias estáveis e de massa. O desenvolvimento da democracia de massas e de projetos nacionais-populares, quando implicam redução da desigualdade de renda ou de propriedade, entraria em choque com a superexploração do trabalho, levando à formação de estados de contrainsurgência, por meio dos quais os processos democráticos são interrompidos e os avanços, movimentos e lideranças populares, destruídos, e de Estados de 4º poder, quando os mecanismos democráticos de representação são parcialmente restituídos, mas encontram-se na prática submetidos a procedimentos de controle e coerção que impedem o exercício da soberania popular nos termos liberais representativos. O desmonte parcial ou completo dos Estados de 4º poder tenderia a levar novamente à agudização da competição política, ao protagonismo popular e aos dilemas entre o avanço para o socialismo e a imposição de golpe de Estado de contrainsurgência.

Trabalho e globalização

Em seus escritos dos anos 1990, Marini estende o conceito de superexploração aos países centrais para explicar as transformações na divisão internacional do trabalho trazidas pela globalização. Para o autor, a globalização transfere o monopólio da tecnologia para a ciência e reorienta as cadeias produtivas dos mercados internos para o mercado mundial, permitindo situar, neste âmbito, a combinação entre alta tecnologia e força de trabalho superexplorada como nova fonte de mais-valia extraordinária. Tal reconfiguração passa a situar a pequena e média burguesia dos países centrais, que responde pela maior parte dos empregos ali gerados, abaixo das condições médias de produtividade, levando-as a recorrer à superexploração do trabalho.

Subimperialismo

Outra contribuição é o conceito de subimperialismo, pelo qual alguns poucos países dependentes, como o Brasil, podem usar seu maior nível de integração tecnológica ao capital estrangeiro para explorar assimetrias regionais ou internacionais em seu favor. Segundo Marini, o subimperialismo encontra dois tipos de expressão possíveis neste tipo de país dependente: a) como política para o setor industrial, para o qual busca gerar demanda internacional em razão dos limites da demanda interna provocados pela superexploração do trabalho, bem como novas fontes de investimento e suprimentos de matérias-primas em circuitos regionais ou periféricos; b) como política de potência, por meio da qual busca elevar o valor agregado da produção nacional e sua inserção na divisão internacional do trabalho.

O lugar do subimperialismo nos países dependentes oscila então dentro de uma certa margem de possibilidades estabelecida pela relação com os países imperialistas: quanto maior a subordinação política ao imperialismo, mais o subimperialismo se restringe a dimensões econômicas, subordinando-se a outras prioridades na hierarquia das políticas públicas; quanto maior a autonomia política na integração tecnológica ao imperialismo, mais o subimperialismo se constitui como um projeto de autonomia produtiva para alterar o lugar do país na hierarquia de poder político e econômico mundial. Todavia tal projeto de autonomia carece de bases políticas, sociais, econômicas e militares para se sustentar de forma independente e tende a se ajustar às imposições do imperialismo e às do conjunto da própria burguesia associada, que não apoia a prioridade a uma política setorial, sob a perspectiva de consequências favoráveis de médio e longo prazo ao seu Estado, em detrimento do seu lucro imediato.

Um exemplo de política subimperialista de potência foi a realizada pelos governos militares de Brasil e Argentina e pelo governo de Saddam Hussein no Iraque. No caso brasileiro, destaca-se a inviabilidade da tentativa de internalizar a indústria pesada mediante a dependência financeira, processo estrangulado com a crise da dívida externa, e de criar uma indústria de informática soberana, sem investimentos massivos na educação pública. Nos casos argentino e iraquiano, as tentativas de incorporar pela força as Malvinas e o Kuwait abriram confrontos com o aparato militar do imperialismo, sendo amplamente derrotadas.

A ofensiva neoliberal, como analisa Marini, colocou o subimperialismo na retaguarda, destruindo cadeias produtivas industriais e sua articulação interna, reprimarizando a pauta exportadora e aprofundando a dependência tecnológica. Tal ofensiva e seus efeitos sobre o aparato produtivo dos países latino-americanos abre, todavia, fraturas entre as classes dominantes latino-americanas e segmentos militares da região que, em determinados contextos, se incorporam à onda nacional-popular que se impõe a partir da década de 2000, como foi o caso da Venezuela, que Marini não pôde analisar, em razão de sua morte.

Ele também não pôde observar a retomada do subimperialismo brasileiro, sob novo formato, através dos governos petistas, que buscaram impulsioná-lo restringindo sua amplitude setorial a nichos produtivos, como os setores de petróleo e gás, construção civil, agroindustrial, automobilístico e de energia nuclear, mas combinando-o com uma política externa de cooperação institucional entre os países latino-americanos e com a ampliação de sua base interna de apoio popular, a partir de uma conjuntura internacional favorável às nossas exportações. Tal projeto, articulado principalmente via BNDES e que passou a disputar com a política neoliberal a hegemonia de nossa política externa, foi profundamente atingido pelo golpe de 2016 que alinhou radicalmente o país, novamente, à ofensiva neoliberal.

IHU On-Line – Que outras abordagens foram feitas da Teoria da Dependência por setores e intelectuais da esquerda? Ainda nesse sentido, pode nos dar um panorama acerca de quais aspectos da abordagem de Marini se contrapõem à abordagem tanto de outras posições marxistas quanto da concepção da Cepal?

Carlos Eduardo Martins – É preciso mencionar que a obra de Marini se destaca no âmbito do que ele chamou de segunda onda de construção da teoria da dependência e do início da terceira. A segunda onda se deu no contexto da compreensão da reestruturação das economias periféricas e suas contradições, a partir da reconfiguração da economia mundial pela hegemonia estadunidense, que cria um novo padrão de acumulação para a região, centrado na combinação do investimento direto das corporações multinacionais com a arquitetura política da substituição de importações, o que levou à industrialização parcial de algumas de suas regiões, restringida, entretanto, pela incapacidade de internalizar de forma significativa os segmentos geradores de progresso técnico para o conjunto da indústria, tal como apontou Theotonio dos Santos e demonstrou Fernando Fajnzylber.

Segunda onda de construção da teoria da dependência

Esta segunda onda se diferenciou da primeira, que se desenvolveu entre os anos 1890-1920, quando o fenômeno da dependência foi percebido embrionariamente por autores como José Martí, que apontaram a contradição entre a autonomia política e a dependência econômica, e por autores como Jose Carlos Mariátegui, que analisaram os limites da dependência, então sob o padrão de acumulação estabelecido pela hegemonia britânica, para industrializar a região. A terceira onda se refere à necessidade de se compreender a reestruturação que incide sobre as economias periféricas por fenômenos como a globalização neoliberal e, tal como a segunda onda fez em relação à primeira, lança novas luzes sobre o fenômeno da dependência em seu conjunto, sobre a economia mundial capitalista e suas contradições.

Da segunda onda que conforma a teoria marxista da dependência se destacam autores como Theotonio dos Santos, Vânia Bambirra, Orlando Caputo, Jaime Osorio, Emir Sader, entre outros. Theotonio dos Santos foi talvez quem mais defendeu a necessidade de se compreender a teoria da dependência como parte da construção de uma teoria marxista do sistema mundial, e aponta para a sua aproximação dialética com os enfoques do sistema-mundo, trazendo ainda para a teoria da dependência conceitos como os de revolução científico-técnica e ciclos de Kondratiev.

Esta geração sofreu, todavia, uma contraofensiva à expansão do seu pensamento, oriunda de quatro fontes:

a) à esquerda, do pensamento endogenista, que priorizou as articulações internas sobre as articulações interna-externa para definir a especificidade do capitalismo latino-americano, e do pensamento neogramsciano que, partindo de uma leitura liberal de Gramsci, propôs a questão democrática como central e superior à questão nacional, passível de solução por um conjunto ampliado e sustentável de reformas democráticas;

b) ao centro, pelo pensamento neodesenvolvimentista que considerou o capitalismo brasileiro movido pela demanda interna, seu padrão distributivo pelo grau de democracia, e sua capacidade de gerar progresso técnico pela possibilidade de centralizar e concentrar capitais; e

c) à direita, pela ofensiva neoliberal, que absorveu parte dos autores do centro e da esquerda; e

d) da teoria weberiana da dependência que oscilou entre o centro, ainda que sem o mesmo otimismo desenvolvimentista, e à direita, de onde se aproximou com a ofensiva neoliberal.

Terceira onda de construção da teoria da dependência

A terceira onda conta até certo ponto com a presença dos autores da segunda onda e com a formação de uma nova geração, na qual incluo meus trabalhos e onde se destacam autores como Adrian Sotelo Valencia, Aña Esther Ceceña, Nildo Ouriques, Marcelo Carcanholo, Mathias Luce, entre outros. Nesta onda algumas questões teóricas, analíticas e empíricas se colocam:

a) a necessidade de se avançar na construção de uma teoria marxista do sistema mundial para integrar a problemática da dependência na compreensão das contradições do capitalismo mundial e das possibilidades de superá-lo por um outro sistema;

b) a necessidade de se aprofundar o estatuto teórico e empírico do conceito de superexploração do trabalho e seu desdobramento para os países centrais no capitalismo atual; e

c) a necessidade de pensar as bases da emancipação da dependência, suas dimensões geopolíticas, sua estrutura de classes e seus formatos políticos vinculados à construção de novas formas de socialismo, que relancem a democracia radicalmente, seja no plano nacional ou internacional, e um novo padrão de desenvolvimento comprometido com a erradicação da pobreza e com a preservação do meio ambiente.

Em nossos trabalhos, onde se destaca “Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina”, publicado pela editora Boitempo em 2011, e que está sendo atualizado para a versão em inglês, temos buscado avançar nestas direções, construindo instrumentos teóricos para a análise da conjuntura contemporânea, a partir da extremamente complexa articulação de conceitos como os de revolução científico-técnica, crise estrutural do modo de produção capitalista, financeirização do capital e geração de capital fictício, ciclos de hegemonia, ciclos de Kondratiev, ciclos específicos da dependência, superexploração do trabalho e caos sistêmico.

Em relação ao conceito de superexploração do trabalho, temos buscado contribuir para desenvolver o conceito que Marini lançou de forma seminal e paradigmática, ampliando suas variáveis ao incluir, entre elas, o aumento da qualificação da força de trabalho sem o pagamento salarial equivalente; especificando as condições estruturais para sua abrangência, ao buscar sua expressão matemática na teoria do valor de Marx; e mencionando suas contratendências, ao incorporarmos os efeitos da competição intercapitalista sobre a fixação da mais-valia extraordinária.

IHU On-Line – FHC também é conhecido por ter feito uma abordagem da Teoria da Dependência. Em que aspectos a abordagem dele se aproxima e se diferencia da de Marini?

Carlos Eduardo Martins – Fernando Henrique Cardoso é um dos principais formuladores do enfoque weberiano da dependência e suas principais distinções do enfoque marxista da dependência, do qual Marini é um dos mais destacados protagonistas, são as seguintes:

a. Situa a dependência como o paradigma de desenvolvimento dos países periféricos, rechaçando o nacionalismo e o socialismo que associa à estagnação, por desarticulá-los do dinamismo do mercado internacional. A teoria marxista da dependência defende a transição ao socialismo como a alternativa à dependência, buscando redefinir as relações com a economia mundial, sem rechaçá-la, uma vez que busca não apenas romper com a condição dependente, mas superar a condição periférica;

b. Considera que a nova dependência se caracteriza por entradas de capital superiores às saídas que, diferentemente da que vigia no período imperialista descrito por Lenin, se tornam um instrumento de expansão da demanda interna, da elevação das taxas de investimento e de superação do estrangulamento do balanço de pagamentos. A teoria marxista da dependência destaca o caráter cíclico das entradas de capitais estrangeiros e o saldo líquido negativo no médio e longo prazo, computadas as diversas formas de remessas em relação às entradas, reafirmando a tendência estrutural ao caráter cíclico das crises do balanço de pagamentos;

c. Restringe a análise da dependência a situações concretas específicas, sem se comprometer sobre suas tendências reprodutivas de médio e longo prazo, abrindo o espaço para o ressurgimento do enfoque neodesenvolvimentista, e rechaçando o caráter de teoria para o enfoque da dependência. A teoria marxista da dependência analisa a dependência como parte do processo de desenvolvimento capitalista, apresentando suas tendências evolutivas, novas etapas e padrões de acumulação e as contradições que os permeiam; e

d. Rechaça a superexploração do trabalho como inerente ao capitalismo dependente, destaca a relação do progresso técnico com a produção de mais-valia, e não com sua apropriação, para afirmar a generalização da mais-valia relativa e das democracias estáveis com o progresso do capitalismo. A teoria marxista da dependência destaca a forte relação entre progresso técnico e mais-valia-extraordinária, as diferenças entre mais-valia extraordinária e mais-valia relativa, o papel estrutural da mais-valia extraordinária nos países dependentes e na economia mundial, os limites que coloca para a generalização da mais-valia relativa, e as fortes consequências daí derivadas para a estruturação de democracias estáveis na América Latina e nos países de capitalismo periférico.

IHU On-Line – De que modo a Teoria da Dependência foi implementada, na prática, nas decisões econômicas e políticas do país e da América Latina, e o que isso significou em termos políticos, econômicos e sociais?

Carlos Eduardo Martins – A teoria da dependência foi posta em prática com diversos vieses:

a. À direita, para aprofundar a dependência, o governo Fernando Henrique Cardoso levou o Brasil a uma nova etapa da dependência, de caráter neoliberal, com predomínio da produção de capital financeiro fictício, centralização e destruição de capitais, desmonte de direitos trabalhistas e elevação das taxas de superexploração do trabalho. Curiosamente esta nova etapa da dependência é a negação do que Fernando Henrique Cardoso defendia como intelectual, vale dizer, que a dependência representaria dinamismo econômico, o que contrasta com o medíocre crescimento econômico de 0,9% a.a. durante seu governo, e apenas de 1,2% a.a. a partir de 1994, o que significa que o Brasil segue uma longa onda de fase B de Kondratiev, recessiva, desde 1980, na contramão da economia mundial que estabeleceu uma fase A desde 1994, a qual vem implicando em crescimento econômico per capita de 2,3% a.a. até 2015. Isto é assim porque a destruição de capitais nesta fase da dependência, centrada na abertura comercial e financeira, é imensa e porque a burguesia local já não consegue manter o controle sobre a classe trabalhadora combinando tecnologias da revolução científico-técnica e pleno emprego, recorrendo à produção de capital fictício como estratégia principal de acumulação; e

b. À esquerda, a teoria da dependência tanto se inspira quanto inspira processos históricos. Não é adequado fazer uma correlação direta, mas as tentativas de construção do socialismo ou de uma economia capitalista sob forte regulação estatal e controle popular na periferia têm forte relação com esta, particularmente quando não propõem a ruptura com a economia mundial, mas a mudança da relação com esta, capturando suas externalidades para fortalecer a soberania nacional e elevar o nível de poder do país no âmbito das hierarquias internacionais.

Um programa de políticas públicas inspirado na teoria marxista da dependência implica em aumentar o controle nacional sobre as cadeias produtivas internas, romper com a superexploração do trabalho e criar um importante sistema de ciência e tecnologia e inovação que propicie retirar o país ou região da condição de periferia da economia mundial para constituir um dos polos de poder de uma economia mundial multicêntrica e pós-hegemônica.

Um programa de políticas públicas orientado pela teoria marxista da dependência é também fortemente internacionalista e leva necessariamente à construção de um novo eixo geopolítico para a transformação da economia mundial, sendo esta uma das razões do porquê de a teoria marxista da dependência ter que se desdobrar na construção de uma teoria marxista do sistema mundial.

IHU On-Line – Quais são as consequências dessa teoria hoje, tanto no Brasil quanto na América Latina?

Carlos Eduardo Martins – A teoria marxista da dependência continua sendo um importante instrumento de análise da realidade latino-americana e brasileira e de construção de alternativas estratégicas à dependência da região: inspira as propostas de integração regional e sua assimilação torna-se fundamental para rompermos com o liberalismo e neoliberalismo que permeia a esquerda brasileira.

Crise da esquerda

Uma das razões da derrota da esquerda brasileira foi o abandono de um programa estratégico soberano e popular, enquanto a direita se une em torno a um programa de transformação neoliberal da economia e do Estado numa ditadura política rentista e privatista do grande capital. Se formos perguntar às esquerdas qual é o seu programa estratégico para o Estado e para a economia do Brasil, dificilmente haverá consenso, ou predominará uma resposta sem subordinação ou fortes concessões à ideologia neoliberal. O resultado é um brutal paradoxo: temos um dos períodos mais medíocres e inexpressivos do capitalismo no Brasil quanto aos seus resultados econômicos e políticos e, simultaneamente, uma rendição quase que completa de nossas esquerdas a este.

Importante mencionar que os retrocessos ocorridos na América do Sul em grande parte só se tornam compreensíveis a partir da leitura da teoria marxista da dependência. É preciso voltar criativamente às obras de Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Vania Bambirra e Florestan Fernandes. Nossos cientistas sociais institucionalistas e liberais venderam a ideia de que a democracia brasileira havia se consolidado com a Nova República, mas quando se deram conta descobriram que a Nova República havia acabado e que a democracia respirava artificialmente por aparelhos.

IHU On-Line – Por que a obra de Ruy Mauro Marini é pouco conhecida no país?

Carlos Eduardo Martins – Porque para além do exílio imposto pelo golpe militar do grande capital, a obra de Marini sofreu o bloqueio da intelectualidade liberal institucionalista, que quis eliminar riscos à imposição de uma transição democrática conservadora, dirigida pelos grandes grupos econômicos nacionais e estrangeiros, principais beneficiários e articuladores do golpe, mas que com a redemocratização abriram espaços à formação de uma nova elite intelectual para gerir seus interesses.

A obra de Marini denuncia estes compromissos e suas consequências como a persistência estrutural da desigualdade, da pobreza, da violação da soberania nacional, da alienação de nossos recursos estratégicos, da instabilidade democrática, do uso da violência política e do subimperialismo brasileiro. Como tal, desafiou as estruturas de poder que hegemonizaram a Nova República. Papel destacado na deformação e ocultamento da obra de Marini cumpriram Fernando Henrique Cardoso e José Serra, ao jogarem o peso de sua liderança acadêmica e política para desqualificar e deformar rudemente seu pensamento, quando seus escritos não haviam sido divulgados no país.