Cristãos e marxistas juntos contra a barbárie ao lado dos pobres e dos excluídos
Luigi Bordin IFCS/UFRJ
A Teologia da Libertação e seu caráter histórico-político
Nas décadas 60-70, o fracasso do modelo econômico da teoria do desenvolvimento e a queda dos regimes populistas democráticos burgueses provocaram uma radicalização de amplos setores da sociedade latino-americana. Aderiram a esta radicalização também os setores mais progressistas da Igreja que, conseguindo assumir uma função hegemônica, a levaram a romper com o papel tradicional de defesa da estabilidade social e da ordem burguesa, e a defender radicalmente os direitos humanos, naquela altura drasticamente violados pelos regimes militares. É nesse contexto de práticas sociais, políticas e eclesiais que surge a experiência da igreja popular das Comunidades Eclesiais de Base e sua correspondente teoria teológica: a Teologia da Libertação. Esta última se apresenta, primeiro, como uma “nova forma de fazer teologia” à medida que assume, justamente, tais práticas como um ‘lugar teológico’ do qual elaborar uma teologia política e, segundo. como uma necessária resposta aos ‘sinais dos tempos’ dos desafios históricos concretos daquela realidade. A interrogação básica que então se fazia urgente, por parte de milhares de cristãos sensíveis e empenhados socialmente, era: como continuar a ser cristão em um mundo de pobreza e miséria, sabendo que o pobre não o é pelo destino, mas porque é ‘feito pobre’ por meio de sistemas iníquos? (1).
Os teólogos da libertação procuraram responder, do ponto de vista da fé, a tal exigência. Para isso, em primeiro lugar, recorreram não tanto às mediações filosóficas, mas às ciências sociais. As mediações filosóficas, pelo seu alto grau de abstração, se apresentavam como pouco aptas a alcançar os indivíduos concretos, historicamente determinados. Ao invés disso, as mediações das ciências sociais, criticamente assumidas, propiciavam decifrar, analítica e cientificamente, a dura e concreta realidade histórica da pobreza e da miséria. Em segundo lugar, procuraram interpretar tal realidade, hermenêutica e teologicamente, à luz da fé, isto é, da ‘Palavra de Deus’ testemunhada nas Sagradas Escrituras. Com isso, redescobriram-se o caráter libertário e a opção pelos pobres contidos nos próprios textos bíblicos e o aspecto político da fé (2).
À medida que a Teologia da Libertação, como teologia política, partia de um empenho pastoral prático-político, foi em conseqüência levada a distanciar-se de certas concepções filosóficas aristotélico-tomistas, ou neotomistas, presas a uma concepção a-histórica, abstrata e essencialista do homem, do mundo e da sociedade. Assumiu, ao invés disso, como referência, a perspectiva dialética hegeliano-marxista mais apta a captar o problema da relação homem-sociedade e suas contradições em um contexto historicamente determinado. Em seu início, a Teologia da Libertação teve, como adeptos, os cristãos ligados aos grandes movimentos da Ação Católica, em particular estudantes e jovens operários, que, por sua vez, se encontravam inseridos em um movimento mais amplo de reformas sociais que nascia dos setores mais avançados e modernos da sociedade (universidades, fábricas, centros urbanos e industriais) e que propunha uma mudança estrutural (3). Mais tarde, com a repressão à Ação Católica, em particular a estudantil e a operária, por parte das ditaduras militares, e com sua supressão, a própria Igreja-instituição encontrou-se diretamente envolvida na defesa das massas oprimidas (4). Dessa forma, abriu-se para os pobres um espaço institucional pelo qual passaram a exercer papel de sujeitos da vida religiosa mediante as Comunidades Eclesiais de Base. Estas representaram uma proposta menos autoritária e mais democrática de gestão da Igreja, levando o agente de pastoral (bispo, padre, dirigente leigo) da posição de ‘elite’ àquela de simples animador, deixando de lado o autoritarismo e o paternalismo. Na medida em que as Comunidades Eclesiais de Base ganharam terreno começaram a gerar um movimento de reforma a vários níveis dentro da igreja, tanto na doutrina quanto na organização e no culto. Muitos bispos e padres envolvidos em tal experiência abandonaram modelos e normas burguesas de comportamento tornando-se mais democráticos, dividindo seu poder em uma redistribuição de serviços no seio da comunidade. Pode-se dizer que, talvez tenha sido através de tais experiências a primeira vez que, na Igreja católica, o povo criou a sua organização e cultura sem ser autoritariamente dirigido do alto. Graça à participação popular, as Comunidades Eclesiais de Base começaram a ter uma importância política considerável representando uma forma autônoma de organização popular (5).
As mediações sócio-analíticas da Teologia da Libertação: Teoria da Dependência e Marxismo.
A Teoria da Dependência teve uma influência fundamental na Teologia da Libertação: ofereceu-lhe uma perspectiva analítica básica para compreender o problema da pobreza e da miséria na América Latina não só do ponto de vista conjuntural, mas estrutural; com base em dados e pesquisas empíricas, mostrou cientificamente o caráter da exploração dos centros desenvolvidos em relação às periferias subdesenvolvidas (6). A Teoria da Dependência surgiu na convergência de dois distintos percursos intelectuais: um que se originou nas primeiras discussões latino-americanas sobre o desenvolvimento da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina da ONU ), e outro que surgiu de uma releitura e uma interpretação marxista dessas questões (7). A base comum das duas vertentes foi a premissa de que não era possível entender as tendências nacionais fora do processo de internacionalização do capital, e de que o subdesenvolvimento, enquanto baseado em um intercâmbio desigual, era estrutural. A diferença entre as correntes foi que a que recorreu também à tradição marxista, analisou o desenvolvimento, e o subdesenvolvimento, no quadro marxista clássico da acumulação do capital em escala internacional e de seu movimento cíclico de longo prazo. Nestas investigações e discussões, o marxismo, à em medida em que a situação histórico-conjuntural-revolucionária o levava a repensar-se critica e criativamente, se tornou cada vez mais relevante para a compreensão da realidade social dos países subdesenvolvidos. Em uma fecunda relação com o marxismo, a Teoria da Dependência, na tentativa de fornecer uma explicação geral do subdesenvolvimento, passou também a superar os confins da economia abrangendo as instâncias sociais e políticas (8).
Os teóricos da dependência revelaram como o capital estrangeiro penetrando na América Latina não se limitou somente ao setor primário e das exportações mas se dirigiu também, e sobretudo, ao industrial-produtivo mediante investimentos diretos de capital e de máquinas, obrigando, com a conseqüente desnacionalização dos próprios meios de produção, as próprias burguesias nacionais a tornarem-se sócias menores do grande capital internacional. Quando os teólogos da libertação, como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, Clodovís Boff e outros, sublinhavam a importância das análises marxistas, para compreender cientificamente a realidade sócio-econômica, estavam justamente tendo como referência em especial as análises elaboradas pela interpretação marxista da Teoria da Dependência. Não poderia ser diferentemente à medida que tais análises representavam, nessa época, o que de mais científico e avançado existia no âmbito das ciências sociais latino-americanas (9). Deve-se considerar que tanto a Teologia da Libertação como a Teoria da Dependência se desenvolveram em um clima de consciência no qual se percebia a crise aguda do capitalismo na América Latina e se esperava uma mudança. Foram as duas, em âmbitos distintos, também formas de divulgação da consciência de uma situação revolucionária em muitos países do continente latino-americano (10).
Méritos e limites da Teoria da Dependência. Da Teoria da Dependência a uma teoria do sistema mundial
O mérito principal da Teoria da Dependência está na sua contraposição polêmica às teorias desenvolvimentistas, elaboradas em uma perspectiva eurocêntrica, e, sobretudo, em ter focalizado as contraditórias condições do desenvolvimento latino-americano (11). Com efeito, conseguiu demonstrar, científica e analiticamente, como a “relação de interdependência entre duas ou mais economias (ou entre tais economias e o sistema comercial mundial) se torna uma relação de dependência, onde alguns países podem expandir-se só subordinadamente à expansão dos países dominantes, os quais podem induzir efeitos positivos ou negativos no desenvolvimento imediato dos primeiros” (12). O limite maior foi claramente apontado por A. Gunder Frank. “A utilidade das teorias do subdesenvolvimento estruturalistas e da dependência (em suas várias versões), como guias para a ação política”, afirmou ele, “parece ter-se esvaziada por causa da crise mundial dos anos 70. O calcanhar de Aquiles dessa concepção da dependência sempre foi a implícita (e às vezes explícita) noção de alguma alternativa independente para o terceiro mundo. Tal alternativa teórica nunca existiu na prática e torna inaplicáveis tais teorias redutivas sobre a dependência e as soluções práticas derivantes” (13). Também R. M. Marini constatou que, no curso da crise, sob a ofensiva ideológica e as pressões neoliberais, “o pensamento social latino-americano não conseguiu retomar a elaboração crítica e original que vinha realizando”(14).
Todavia está convicto de que: “retomar o fio da Teoria da Dependência como ponto de partida significa reencontrar o melhor do pensamento de esquerda, mas não supõe de modo algum que ela seja resposta suficiente à atual problemática. Pelo contrário, faz-se necessário assumi-la de modo criador, isto é, submetendo-a a uma revisão radical. É impensável que se possam conservar as concessões metodológicas ao funcionalismo, que viciam a obra de muitos de seus autores, assim como as teses equivocadas ou importadas do arsenal desenvolvimentista”(15). No mesmo sentido vão as observações de T. Dos Santos. “As implicações teóricas da Teoria da Dependência”, escreve, “estão ainda por desenvolver-se. Sua evolução na direção de uma teoria do sistema mundial buscando reinterpretar a formação e desenvolvimento do capitalismo moderno dentro desta perspectiva é um passo adiante neste sentido” (16). Com efeito, a nova situação estrutural impõe novas abordagens. Trata-se para os teóricos da dependência, não de abandonar o caminho percorrido mas de percorrê-lo criticamente, para abrir-se, sempre porém no espírito da Teoria da Dependência, a uma teoria mais ampla com referência ao sistema mundial, na linha das investigações de I. Wallerstein.
Teologia da Libertação na época do refluxo e da ofensiva neoliberal
A forças que tradicionalmente davam impulso à mudança – os setores burgueses democrático-nacionalistas e os movimentos populares e de esquerda – se encontravam, na década de 1980, depois de anos e anos de ditadura e de repressão, reduzidas e desmobilizadas. Criadas, mediante isso, as condições da transição econômica favorável às multinacionais e ao capitalismo norte-americano, se iniciou, então, as aberturas democráticas e a redefinição do caráter do sistema capitalista latino-americano e das suas conexões com o sistema mundial. Foi esta, porém, uma época de recessão aguda em que se agravou a dependência e se aprofundou a brecha entre ricos e pobres.
No âmbito da Igreja-instituição, o setor moderado-conservador começou a tomar fôlego com o explícito apoio do Vaticano que, através de intervenções diretas e de estratégias burocrático-administrativas, procedeu a isolar os elementos mais ativos e preparados da Teologia da Libertação e da Igreja das Comunidades Eclesiais de Base. Enquanto isso, a controvérsia, no interior da igreja, sobre a utilização das categorias marxistas, pôs a Teologia da Libertação em posições de defesa, induzindo-a a minimizar suas referências ao marxismo. De resto, a própria Teoria da Dependência, perante das novas condições econômicas e políticas que se criavam e à ofensiva neoliberal, começava a mostrar sinais de cansaço. Em particular, notou-se uma insuficiência teórica na elaboração de nexos entre análises econômicas e análises políticas (17). De um ponto de vista operacional, a Teoria da Dependência não foi capaz de propor uma estratégia praticável. Uma perspectiva global e totalizadora por demais ambiciosa e um tom catastrófico permitiram, também, a recuperação a-crítica de temas da terceira internacional, levando com isso a práticas voluntaristas com resultados negativos. Deve-se ter presente também a luta ideológica que se desencadeou contra a Teologia da Libertação, no exterior e na América latina, com o apoio do próprio governo dos Estados Unidos. Já em l968, depois de sua viagem à América Latina, Nelson Rockefeller tinha recomendado aos órgãos competentes que se prestasse atenção aos cristãos latino-americanos para o socialismo e à Teologia da Libertação que, naquela altura, estava surgindo (18). A reação veio mais tarde, sobretudo através do movimento religioso fundamentalista protestante que nos anos 70 se transformou na base de um movimento conservador de massa contrário à Teologia da Libertação. Tratou-se de um conservadorismo de massa antipopular muito parecido com os movimentos de massa fascista dos anos 20 e 30 na Europa, fortemente influenciado pela igreja eletrônica, há pouco constituída, e que mais tarde se tornou de fato o seu guia espiritual, apoiando posições políticas neo-liberais e neo-conservadoras. Este movimento ramificado em diversas seitas invadiu nestes últimos anos a América Latina toda.
A reestruturação mundial do capitalismo e América latina
Estamos assistindo atualmente à transição da economia mundial para uma etapa superior. Esta “implica uma crescente homogeneização tecnológica dos processos de produção obtida mediante uma nivelação por cima que se traduz na fabricação de bens altamente padronizados, independentemente do país em que se localizam as plantas produtivas. Isso confere um elevado grau de universalidade às mercadorias que se tornam efetivamente intercambiavéis no plano da produção, o que conduz à internacionalização do processo do trabalho e requer que se iguale de fato a qualificação da força de trabalho”(19). Essa nova etapa da economia mundial visa garantir aos centros industriais o espaço econômico necessário para a circulação de bens e serviços produzidos sobre a base da modernização econômica. Tudo isso levou a uma modificação dos campos de forças na economia mundial fazendo emergir novos blocos econômicos que causaram procedimentos de desintegração e reintegração. “Marginalizados das correntes dinâmicas que cruzam o mercado mundial, pressionados pelo serviço da dívida externa e atolados no estancamento e na inflação”, os países da América Latina viram “fracassar os propósitos de desenvolvimento autônomo e solidário que formularam na década de setenta” (20). Na década de oitenta os Estados Unidos e os organismos de caráter internacional (FMI, etc.), utilizaram-se da dívida externa dos países dependentes para forçá-los a contribuir mais ativamente para a superação da crise em que tinham incorrido os países centrais e a readequar suas economias de acordo com os interesses destes (21). Paralelamente à formação de blocos econômicos, se buscou transformar a superestrutura jurídica do mercado mundial e configurar um âmbito funcional à livre circulação das mercadorias. Um fator decisivo para essas transformações foi a ofensiva ideológica neoliberal que, com a intenção de recuperar a plena liberdade para a circulação do capital, voltou a defender temas do velho liberalismo (como a derrubada das barreiras comerciais que, no pós guerra, protegiam a industrialização da periferia) e a propor a redução do Estado mediante as privatizações, abrindo cada vez mais espaço ao capital privado.
Os efeitos perniciosos das ideologias e das políticas neoliberais
As conseqüências negativas das práticas promovidas pelas políticas neoliberais sobre as economias dependentes são graves. De um lado, está debilitando-se a capacidade de resistir às pressões externas que só o Estado, enquanto força política concentrada, pode assegurar; de outro, as políticas neoliberais tendem a destruir setores econômicos inteiros, em proveito de uma crescente especialização produtiva. A década de oitenta se caracterizou pela perda da capacidade de poupança e de investimento em virtude da transferência do valor para o exterior. Por causa disso, “a queda da produtividade e da inversão nos países latino-americanos, acompanhada do aumento da super-exploração do trabalho, acelerou o crescimento do desemprego, enquanto a economia informal assumiu formas já não simplesmente extralegais, mas francamente ilegais – como o narcotráfico” (22). “A penúria do Estado acarretou, por sua vez, a decadência dos já deficientes sistemas educacionais e de saúde, deteriorou ainda mais a seguridade social e levou a crises a questão habitacional”(23).
Depois do reajuste ao capitalismo mundial, o dualismo estrutural latino-americano aparece hoje ainda mais profundo: de um lado, o setor organizado, capitalizado, integrado aos mercados nacionais e internacionais, subsidiado e favorecido pelo Estado; do outro, o setor desorganizado, descapitalizado e condenado a viver fora do capital, da tecnologia, dos mercados e sem a ajuda do Estado: aquele das grandes massas empobrecidas. Também o panorama político, apesar dos regimes democráticos, aparece desolador: classes dirigentes e partidos sem prestígio, Estado e controle dos serviços em parte corruptos, tendo-se instalado em diversos níveis de seus aparatos máfias ligadas ao trafico da droga e às especulações financeiras. Inteiras camadas da população caíram em grande pobreza e as classes médias vão diminuindo. A violência urbana revela-se mais mortífera do que a rural, e mais ainda do que a revolucionária do passado. À miséria econômica se acompanha uma degradação dos setores da saúde e da cultura. Neste clima, as seitas pseudo-religiosas proliferam assim como as drogas. No meio da ignorância e do desespero, aparecem sempre ‘salvadores’ de tipo neofascista e fundamentalista. Enquanto isso, as medidas neoliberais não conseguem solucionar estes imensos problemas. Aplicadas com relativo sucesso em certas democracias industriais do norte, tais medidas mostram-se impróprias para a América latina, faltando-lhe a prévia realização de amplas reformas agrárias e fiscais. Com efeito, as terras continuam nas mãos de poucos latifundiários e os superlucros das oligarquias são reinvestidos no estrangeiro. As críticas neoliberais ao gigantismo da máquina estatal e à sua ineficiência são justas, mas deve-se ter presente a fragilidade dos Estados latinos americanos. Como afirma, a este propósito, R. M. Marini : “o Estado [deveria assumir] o papel reitor nessa nova etapa do desenvolvimento da região, como o fez no passado, a fim de orientar o processo e coibir a cupidez dos grupos transnacionais”(24), “garantir que a privatização não signifique apenas o traspasso do patrimônio público a mãos privadas, mediante transações de seriedade duvidosa, mas conduza a uma participação popular significativa no plano da produção e da distribuição de bens. Trata-se, enfim, de que as chamadas políticas de austeridade representem de fato o fim das transferências ao setor empresarial privado e, simultaneamente, impliquem o direcionamento do gasto estatal para as políticas sociais, com prioridade – além da saúde – para a educação, condição sine qua non para que a população latino-americana seja capaz de ajustar-se às exigências que as mudanças técnico-científicas acarretam a nível de produção e dos serviços, além de ser instrumento indispensável à elevação política e cultural dos trabalhadores”(25) Ora, não é isso que se está vendo nas práticas políticas dos países latino-americanos, influenciadas, melhor dito, condicionadas pelos países centrais através dos seus aparatos internacionais de controle e de poder ( FMI. etc,).
Triunfo da racionalidade sistêmica e expropriação do sujeito
A globalização da economia é mais que o triunfo das multinacionais. Estamos na terceira fase do capitalismo em que as tecnologias, em particular, as informáticas, se tornaram o eixo de um novo processo de acumulação. A grande novidade é que o capital agora exerce imediatamente o seu comando não tanto sobre a força-trabalho, que vai gradualmente especializando-se e diminuindo, mas, antes e sobretudo, sobre o saber tecnológico, na medida em que o controle do processo produtivo passa, cada vez mais, pelo controle dos saberes técnicos (26). Com efeito, o capital, que possui o controle do processo social de produção e de reprodução, é, em particular, só o cognitivamente estratégico: aquele que une diversos saberes tecnológicos e que, ao mesmo tempo, consegue organizar a produção e a distribuição das inovações técnicas.
A inovação, que a microeletrônica contribuiu para realizar, se traduz em uma verdadeira revolução também ao nível de organização do trabalho. A fragmentação extrema das prestações de trabalho, e a proliferação de unidades produtivas deslocadas em vários níveis do processo produtivo são conseqüência de uma racionalização do sistema das empresas. Criou-se, dessa forma, a base estrutural de enormes poderes, subtraídos aos vínculos da própria democracia política. Estes poderes, às vezes transnacionais, conferem aos sujeitos que os detém (indivíduos, setores de classes sociais) uma grande incidência na vida nacional e internacional, na cultura, na informação, nos estilos de vida, nos hábitos de consumo, etc. O capital, entrelaçado ao saber tecnológico, possui uma mobilidade sobre nacional. Está em grau de instituir relações de subordinação com áreas geográficas e lugares de produção-consumo, entre as áreas onde se troca matéria prima com técnicas de segundo grau (aplicações, procedimentos). A interdependência e o mercado único são o cenário, o teatro deste novo capitalismo (27).
A nova forma do ciclo econômico, determinada pela reestruturação microeletrônica e informática, nas mãos de grandes poderes econômicos, mudaram profundamente também as formas da política tradicional. Constata-se uma perda da centralidade do público-estatal. O Estado está sempre menos em grau de desenvolver um papel de condicionamento direto ou de agir sobre a conveniência de mercado. A gestão da formação e da informação tende a tornar-se lugar da expansão da lógica econômico-capitalista (empresa-mercado), sobretudo no campo da pesquisa e do mass-media. Vigora um estatuto de competência sempre menos conexo à tradicional formação humanista geral e sempre mais ligado a uma formação técnica especializada. As cidades se tornam cidades-mercado, cercadas de pólos comerciais e financeiros, em mãos de grandes grupos. Vem configurando-se uma política que administra a passividade, difundindo, de um lado, a imagem coletiva da unidade na forma de um líder capaz de rápidas decisões, e do outro, ampliando as prestações institucionalizadas de cunho mais ou menos clientelístico (28). Os partidos de massa estão tornando-se burocracias ao redor de cúpulas de poder, que, ao invés de favorecerem as livres expressões de liberdade da sociedade civil, as manipulam e as sufocam. A democracia vem reduzida à técnica para a seleção dos governantes com a implícita negação da participação real das massas às decisões coletivas sobre a utilização do bem comum. A forma política de governo do atual ciclo econômico mundializado, não podendo tolerar vínculos territoriais, nacionais e estatais, deve reorganizar continuamente relações de aliança entre diversas burguesias nacionais em vista da unificação do mercado mundial através de uma totalitária manipulação das necessidades humanas. O destino das nações incapazes de gerir o saber complexo e as inovações tecnológicas é o de tornarem-se subsistemas. Originando-se, desse modo, novas formas de imperialismos.
Centralidade da empresa e sua lógica como último horizonte
A organização técnica da técnica representa o eixo do novo processo de acumulação. Isto implica que o saber se torna cada vez mais especializado visando a funcionalidade e a eficácia. Sobre o saber e sua organização institucional prevalecem lógicas e objetivos que pouco ou nada têm ver com aquela que deveria ser a função da Universidade: a recomposição unitária dos saberes e o confronto crítico entre as diversas culturas. A pesquisa científica está cada vez mais atrelada à empresa. Passa-se da Universidade de tipo tradicional, fundada sobre a unidade dos saberes, à de tipo americano, inspirada no pragmatismo e na setorização dos saberes especializados. É banida do estatuto científico cada disciplina que tente a redefinição de pontos de vistas gerais. Vão definhando os ensinamentos de teoria geral e de caráter cultural no sentido tradicional histórico-filosófico de cunho humanista. O produto final deste tipo de ensino é um indivíduo disponível ao sistema, sem capacidade crítica de tipo dialético (29).
Assiste-se, dessa forma, a um eclipse do sujeito como centro de sua autonomia e responsabilidade e à emergência de um indivíduo descentralizado, amorfo, libídico. No lugar de um “eu” racional, que foi parte constitutiva do processo de modernização, impõe-se sempre mais o desejo narcisista de uma imediata gratificação. O indivíduo se torna um puro lugar onde se entrelaçam as tramas de um sistema social complexo e funcional. Este responde a uma lógica absolutamente auto-referencial que visa a sua própria auto-organização e estabilidade (30). Neste contexto, não há lugar para o sujeito humano autônomo, mas só para indivíduos contingentes que, no sistema e subsistemas, assumem papéis diferentes. Em outros termos, a concepção do sujeito dos grandes sistemas filosóficos do século XIX, isto é, como Sujeito Universal que unifica todos os indivíduos particulares na consciência e na racionalidade comum, se eclipsou na teoria e na prática(31). Com efeito, o pensamento e a filosofia contemporâneos se caracterizam por um formalismo e tereoreticismo cada vez mais abstrato, a-histórico, a-dialético e pela crítica de todo fundamento metafísico, de toda idéia de verdade absoluta. Trata-se, como dizia Adorno, de filosofias sem conteúdo. Perdida no meio de tantas disciplinas, a filosofia ocupa um lugar modesto. Estamos diante de filosofias em sintonia com a atual transformação do saber em técnica. Enquanto isso, a cultura de massa se apresenta como mercadoria, em relação de total dependência das forças da indústria, tornando-se sempre mais um fenômeno manipulável e administrável. Na verdade, como único sentido possível aparece aquele depositado pelo sistema: é este o verdadeiro Sujeito doador de sentido, no meio da frenética atividade dos indivíduos cada vez mais administrados (32).
O impetuoso crescimento das tecnologias e a globalização das formas e dos modos da organização capitalista, a crise das estratégias social-democráticas nos países em que existe uma alta difusão de bem-estar, as tentativas de tornar passivo e desorganizar o movimento operário e sindical, a reformulação da organização dos conhecimentos e da pesquisa dentro de padrões técnicos formais, a difusão maciça de uma literatura apologética do capitalismo nos moldes neoliberais e do mercado, a reaparição da questão racial e de conflitos étnicos e regionais, eis os dados emblemáticos que caracterizam o mundo de hoje e sua racionalidade sistêmica. As sociedades aparecem atravessadas por ondas de contradições e de insuperáveis desigualdades, mas, na aparente desordem, uma nova ordem procura afirmar-se como expressão da centralidade da empresa e de sua lógica como último horizonte (33).
A teologia da Libertação na conjuntura atual: revisão e reafirmação de seus princípios
Diante dos desafios que a atual conjuntura apresenta à Teologia da Libertação Hugo Assmann reafirma, antes de tudo, a importância de um seu elemento fundador: a de querer ser “aprendizagem da escuta do silenciado”(34). “Mais do que nunca”, diz Assmann, “a Teologia da Libertação deve manter e intensificar sua disposição de uma constante metanoia”, pois, “vivemos, hoje, em meio a um ingente processo de silenciar a realidade clamorosa e os clamores sufocados das vítimas inumeráveis. Surdez, insensibilidade, bloqueios da solidariedade são o que predomina. Sem conversão não há escuta do clamor, não há fé” (35).
Um grave desafio é o que ele chama de “seqüestro do evangelho pela oikouméne do mercado”. Isto é: a lógica do mercado, na medida em que, assentada na concorrência e na competitividade, continua a gerar um imenso processo de exclusão, está sendo todavia ideologicamente messianizada como o único caminho admissível. Na verdade, “o fosso entre países ricos e países pobres (com réplicas análogas no interior de nossos países) foi criando uma situação inédita: a maioria dos pobres aparece como perfeitamente inútil e inaproveitável enquanto fator produtivo”(36). “Os países ricos ainda necessitam dos países pobres (como exportadores de capital, de matéria primas e como fornecedores de mão-de-obra barata). Mas já não precisam da maioria de sua população. O velho tema do “exército industrial de reserva” já não basta para abordar esta questão” (37). Hoje, escreve L. Boff, “a robotização e automação dispensa grandes porções do operariado. É a assim chamada taxa social, o custo do ajuste estrutural. Atrás disso vigoram mecanismos sacrificais e processos perversos de exclusão. Há milhões de desempregados estruturais que jamais poderão reentrar no processo produtivo ou constituir o exército de reserva para o capital”(38). “Agora são nações inteiras excluídas, não mais classes. Elas contam na medida em que são pagadoras da dívida externa. É uma dívida mais política que econômica. Os grandes bancos se asseguram contra o não eventual pagamento da dívida. Mas cobram os juros para atrelar politicamente as nações aos interesses dos países centrais e de suas classes dominantes, articuladas com setores dominantes na periferia”(39). Além da mundialização do mercado, temos uma mundialização da cultura ocidental. “A tecnociência, o estilo de vida, os valores culturais, religiosos e artísticos ocidentais acompanham a dominação econômica”(40). Esta mundialização se caracteriza pela negação das diferenças e pela imposição de sua identidade branca, etnocêntrica, cristã.
Diante dessa trágica realidade, em que “a maioria da humanidade passa ao rol de inaproveitável”, a Teologia da Libertação, segundo Assmann, deve propor-se, em primeiro lugar, uma revisão, e, em segundo lugar, reafirmar a fidelidade aos seus princípios inspiradores. Trata-se, antes, de rever ingenuidades e os esquematismos em que elas se inscreviam: certas “mediações sócio-analíticas, esquemas de luta, vanguardismos impopulares, e até com doses solapadas de populismo” (41). “Seria ingênuo”, confessa Assmann, a esse respeito, “não dar-nos conta de que não soubemos precaver-nos o suficiente para evitar que nos colassem ismos particularmente demonizados….. A realidade é espessa e a dialética disponível tinha vícios de enveredar por atalhos, de maneira mais não dialética. Isso tanto na teoria quanto na prática. Creio que não deixamos de incorrer, por vezes, no pecado dos intelectuais, quando usurpam representatividades e, alcantilados em suas competências específicas, ignoram as muitas falas diferentes” (42) “A Teologia da Libertação nasceu bastante ecumênica (…) apesar disso (…) prosperou uma certa petulância católica (…) Perdura (…) um despreparo dos católicos para estabelecer fecundas alianças ecumênicas em muitos planos(…) Houve lerdeza, e até cegueira, na captação dos desafios da discriminação da mulher, do negro, do índio, das variantes étnicas e culturais”(43). Em particular, hoje, a Teologia da Libertação deve considerar que, no âmbito da Igreja, não é a voz preponderante, mas tolerada: na melhor das hipóteses, uma voz entre outras; e que os espaços democráticos nas Igrejas são estritos e que “achá-los, utilizá-los e buscar ampliá-los requer perseverança” (44).
Por quanto se refere à reafirmação de princípios, Assmann destaca, antes de tudo, a importância fundamental dos seus pontos de partida: a práxis, isto é, as práticas sociais, as reivindicações e lutas dos pobres e dos excluídos , e a fé, entendida como a escuta do clamor, pois o Deus verdadeiro “é aquele que escuta o clamor das vítimas”. Outros pontos essenciais, para a Teologia da Libertação, são: uma abertura à Transcendência mas na experiência concreta da vida e no interior da história, rejeitando interiorizações idealistas e fugas no misticismo; e o diálogo crítico com as mediações sócio-culturais e analíticas, pois “não dá para trabalhar a teologia só dentro dela mesma. Quem o tenta fabrica túmulos, mesmo que sejam vistosos mausoléus”(45).
O marxismo e o problema da libertação: é possível um resgate das “verdades” de Marx e da tradição marxista?
O padre jesuíta, Jean Yves Calvez, autor de uma importante obra sobre o pensamento de Marx, em um lúcido artigo intitulado “O que permanece do marxismo?”, se fazia esta pergunta: “Os regimes comunistas se afundaram. Basta isto para desqualificar toda a reflexão de Karl Marx?”(46). E dava sua resposta:
“Sem dúvida o marxismo, e até o próprio Marx, estão na origem de aspectos importantes – e de alguns dos mais perturbadores – do comunismo histórico, (aspectos que, evidentemente devem ser rejeitados). A pretensão científica, o materialismo histórico (determinação última de toda a sociedade e da história pela ‘forças da produção material’), a concepção de uma classe com um papel propriamente messiânico, (…) a pretensão de um papel de direção de toda a sociedade pelo partido de vanguarda do proletariado: eis aqui outros tantos pontos”, dizia ele, “que não receberão mais adesão. O aparente porém enganoso rigor de muitos dos argumentos do O Capital não seduzirá sem dúvida já tanto: há demasiados postulados não demonstrados. “Mas”, acrescentava, “essa filosofia preocupada pela realização do homem no mundo do homem, essa atenção aos processos de alienação pelos quais com tanta freqüência nos perdemos (….), este desejo de que os direitos do homem não continuem sendo uma coisa abstrata, hipócrita ou formal (…), e esta sensibilidade todavia à acumulação em poucas mãos tão típica do capitalismo quando não se controla: eis aqui outro aspectos do marxismo, ou de intuições de Marx que, todavia, muito provavelmente seguirão atraindo. Pequena parte de sua obra, dirão quem sabe alguns. Sim, em um sentido; porém se trata de páginas que ainda ontem eram a mais capazes de unir os homens , de fazer pensar, de mobilizar” (47).
Estas contundentes afirmações de um padre jesuíta tão qualificado merecem atenção. Calvez opina que o marxismo, quanto às soluções e propostas, tenderá a fazer-se mais modesto. Embora esteja (e justamente) preocupado com uma filosofia de realização do homem num “mundo do homem”, entenderá, também, que não pode pretender fechar a porta à fé em uma realização mais alta e mais completa, além deste mundo do homem que é limitado(48). O jesuíta conclui afirmando que: “Mais além de uns regimes que provocaram a aversão dos povos, Marx pode ainda seguir sendo uma mina para a reflexão”.
Outro válido depoimento sobre o que resgatar e o que abandonar do marxismo é o de um outro grande intelectual católico, o padre italiano Ernesto Balducci, que foi, por muitos anos, um excepcional ponto de referência da área católica progressista e da cultura de esquerda italiana. Também Balducci, como Calvez, aponta os sérios limites do marxismo sobretudo em suas versões oficiais e dominantes. Segundo ele, o liberalismo e o comunismo, além de suas diferenças, estão presos às categorias do industrialismo, ao comum projeto que visa o domínio tecnológico da natureza, àquela religião do progresso tecnológico cujo dogma foi o de acreditar em uma relação mecânica meios-fins. A ideologia burguesa e a proletária permaneceram internas ao mesmo pressuposto do modelo de desenvolvimento econômico e social aprontado pela revolução industrial. Deste modo o marxismo foi achatado pelo economicismo e pelo eurocentrismo. Por estas razões, segundo Balducci, o marxismo:
“se não se repensar radicalmente, mediante uma espécie de morte a si próprio, (….) se reduz a um escombro do passado” (49). Mas, logo, acrescenta “isto não quer dizer (….) que o marxismo deva ser abandonado. A novidade é outra: (…..) não nos convertemos mais ao marxismo como a um ponto de vista totalizante. Aliás, não nos convertemos mais a nenhuma forma espiritual entre as existentes, dado que em cada uma aconteceu o evento dramático da decadência na relatividade.”(50). Do marxismo não deve fazer-se uma assunção não crítica, mas na medida em que consegue propor-se como um ponto de vista aos marginalizados e aos oprimidos, esta sua instância de libertação humana deve ser retomada, sobretudo agora, depois do salutar desmoronamento dos regimes do leste europeu. “Como não pensar”, diz Balducci, “à luz da consciência que Marx fez descer na multidão dos oprimidos de todo o planeta? Quem poderia dizer que o sonho antigo daquelas multidões se tenha dissolvido com o dissolver-se dos burocratas e dos doutrinários que em nome de Marx o tinha trazido para uma esfera glacial?” (51).
Aspectos messiânico-proféticos de Marx
Implicitamente, tanto Calvez quanto Balducci põem em realce os traços e os aspectos fortemente proféticos e messiânicos da obra de Marx. A este respeito escreveu com pertinência Edgar Morin: “Marx traz em si, mas secularizada, a fé judaica no Messias e a idéia paulína (judaico-cristã) que a salvação messiânica é para toda a humanidade. Mas ele é especificamente pós-marrano no formidável poder com que coloca de novo em questão e repensa a sociedade humana e, singularmente, a sociedade moderna” (52). A mesma coisa afirmou Erich Fromm, em uma entrevista. “O que realmente contava para Marx”, dizia ele, “era a libertação do homem num sentido humanístico. Se compararmos as filosofias de Goethe e Marx encontraremos algumas semelhanças surpreendentes. Marx tem sólidas e firmes raízes na tradição humanista e, penso eu, também na profética. E quem ler pensadores mais intrépidos e mais radicais de todos os tempos como Mestre Eckhart, se surpreenderá, sem dúvida, ao encontrar também muitas semelhanças com Marx” (53). E, salientando estas colocações, afirmava: “Não quero ser tão devastador em meu julgamento mas acho que a maioria dos especialistas em Marx esquece o fato que o pensamento dele é essencialmente religioso, não no sentido de que pressuponha ou postule qualquer fé na existência de Deus. O budismo tampouco é religioso nesse sentido. O budismo não reconhece um Deus mas é religioso em sua crença central em que temos de transcender o nosso narcisismo, o nosso egoísmo, o nosso isolamento interior, e nos abrirmos para a vida, em que temos – como diria Mestre Eckhart – de nos esvaziar para que possamos nos encher, nos converter num todo. Essa crença, expressa em palávras diferentes, está no âmago da obra de Marx… Há um certo número de estudiosos de Marx, como Ernst Bloch, por exemplo, que vêem claramente esse lado de Marx; e pensadores católicos antimarxistas, como Jean Ives Calvez, também o vêem” (54). “Marx e Trotsky”, diz por sua vez André Neher, “sabem apenas que são judeus, e as vezes são violentemente antissemitas em alguns de seus escritos e dos seus atos. Mas o substrato inconsciente de seu empenho é ainda o messianismo da mística judaica” (55).
É importante, neste ponto, notar como o padre Balducci se, por um lado, propõe ao marxismo de repensar-se radicalmente, por outro propõe a mesma coisa para as religiões. Estas, segundo ele, terão no futuro peso e valor histórico somente se perderem as suas caraterísticas dogmáticas, se nelas se expressar a humana tensão a transcender-se, se darem voz ao multiversum do homem inédito. Existe uma dramática ambivalência nas religiões, postas entre o condicionamento ideológico-histórico e a instância a transcender-se. Sobre elas pesa permanentemente a insídia ideológica, no sentido da falsa consciência já individuada por Marx, em particular o risco do espiritualismo, da evasão, da fuga mística da história (56). As religiões são chamadas à superação de sua atual forma histórica, à individuação e recuperação do seu conteúdo originário além dos êxitos das culturas e dos símbolos determinados. A distinção entre fé e religião visa, para Balducci, a salvaguardar as possibilidades vitais do homem inédito. Também o cristianismo se tornou uma religião historicamente determinada, cristalizando-se em ideologia. O espiritualismo que o insidia no seu interior faz que a mensagem de salvação não parta das necessidades dos homens concretos e dos perigos reais que hoje todos corremos….Também o cristianismo necessita de metanoia, uma conversão radical que lhe permita uma nova adesão à mensagem evangélica, em virtude da qual o serviço ao homem seja serviço a todos os homens, não só aos cristãos ou à mera idéia de universalidade humana.
Avançar ainda: a alienação e o problema da saída do capitalismo
As considerações de Calvez e de Balducci possuem afinidades com as elaboradas (em particular, no último ano de sua vida, 1988) por Cláudio Napoleoni, eminente intelectual marxista e economista italiano quando presidia o grupo da Esquerda Independente do Senado. No balanço que faz então da teoria marxista, vai criticar muitos pontos, entre eles alguns tidos como intocáveis. Por exemplo: a teoria do valor-trabalho considerada um pilar fundamental de todo O Capital (57). Dá-se conta que, depois de Sraffa, o conceito de exploração capitalista deve ser diversamente fundado: deve ser concebido de modo totalmente diferente, isto é, assumindo até o fundo, além de Marx, a teoria marxiana da alienação. “Creio”, escreve Napoleoni, “que Marx é algo muito menos coeso de que normalmente se pensa… Se não se tiver em conta essa complexidade, e até contraditoriedade, do pensamento de Marx, perder-se-ão elementos e dimensões de sua análise que, para um pensamento [alternativo]….são essenciais” (58). Segundo ele, o marxismo viu corretamente o modo capitalista de produção como uma forma historicamente determinada de domínio, fazendo derivar dessa constatação a perspectiva da libertação. Todavia, na tradição marxista, tal libertação de um modo historicamente determinado foi, muitas vezes, erroneamente interpretada como libertação sem mais: libertação total que extrapolando do campo econômico-político assumia um caráter quase escatológico-religioso (59). “Como se sabe”, escreve Napoleoni, “existe uma infinidade de previsões econômico-sociais, feitas pelo marxismo, que foram drasticamente desmentidas pelos fatos, especialmente aquela segundo a qual a crise econômica se teria tornado sempre mais grave (…). Nada de tudo isso aconteceu (…) Mas existe um ponto”, afirma ele, “sobre que essa tradição não pode ser desmentida (…)o da perda do sujeito no objeto, da redução dos homens a coisas ou, dito de outro modo, da redução de todo possível valor ao valor econômico, de toda possível realidade ao dinheiro” (60). Pode-se dizer que “Marx é o único na história do pensamento que fez até o fundo a experiência da alienação, que a inclui de maneira orgânica no seu pensar o mundo” (61). Já num capítulo fundamental de O Capital a respeito do sistema das máquinas, tinha mostrado como o instrumento de produção não é mais um instrumento mas o sujeito que usa o produtor: não é mais o homem que usa a máquina mas a máquina que usa o homem. “O que originariamente foi definido como domínio da coisa sobre o homem pode ser especificado mediante o conceito da técnica moderna (…) justamente concebida como manipulabilidade ao infinito da realidade sem nenhuma barreira, sem nenhum condicionamento, sem nenhuma referência a outros valores que não sejam os do progresso técnico e comercial” (62).
Napoleoni se dá conta dos pontos de crise do pensamento revolucionário, das suas aporias. Todavia, não tira disso a conclusão de sua falência total e de seu fim e como um sinal para a desmobilização. Ao invés, deduz a urgência de encontrar uma resposta ainda mais alta, e de assumir um empenho e uma tarefa. Apesar de tudo, para ele, não acabaram as razões daquele pensamento, ao contrário, a gravidade da situação e a nocividade do sistema chegaram a um ponto tal que nenhum Marx teria podido entrever.
Mas é na tentativa de ultrapassar as aporias do pensamento revolucionário, na definição da tarefa, e na identificação do sujeito capaz de cumpri-la, que Napoleoni se choca com um limite que parece insuperável: diante do radicalismo das análises, manifesta-se a fragilidade das propostas. Quem despedaçará as correntes que nos atrelam ao sistema de domínio? Napoleoni pensa que serão os sujeitos que não forem aprisionados pelo mecanismo dominante, os que a produção deixou como resíduos: certos grupos, certas camadas de mulheres, de jovens, de negros…. Afirma que tais resíduos são muitos e que “os encontraremos se tentarmos dar a eles uma tarefa diversa que não é mais uma tarefa de domínio, mas justamente uma tarefa de saída do domínio” (63). Daqui deriva, porem, toda uma série de interrogações, problemas, perplexidades….
A este respeito, Raniero La Valle, comenta que a proposta de Napoleoni poderia ganhar mais sentido se considerarmos como resíduo não tanto o sujeito, homem ou mulher, que foi posto fora do processo de produção-domínio, mas sobretudo quanto, em todo homem ou mulher, ficou não submisso, não expropriado, não vencido. O resíduo, o resto, [seria] a parte não absorvida pela alienação, a parte escondida, removida, desconhecida, mas que permanece inviolada, a parte inalcançável de todo homem. Mas, onde encontrá-la, se pergunta La Valle , “onde despertá-la, senão onde em cada homem o nada confina com Deus?” (64).
A tarefa da saída do domínio e a abertura à alteridade. Marx como pensador da alteridade.
O capitalismo é um sistema de domínio que, baseado na competitividade e na concorrência, pode desembocar em verdadeiras guerras. “Em sua forma moderna, esse sistema, nascido no Ocidente, presidiu a conquista das Américas, fundou e desenvolveu o Estado moderno, e teve seus teóricos e fundadores em uma gama que vai de Maquiável a Hobbes, a von Clausewitz, a Carl Schmitt, a Regan. Fundou Colônias e Impérios, produziu guerras e inúteis massacres, e conheceu a máxima degenerescência no nazismo e no fascismo” (65). O próprio socialismo, no ataque ao capitalismo e ao imperialismo, não foi imune à ideologia da guerra e da violência.
Impõe-se, pois, hoje, mais do que nunca, a tarefa da saída ético-política deste sistema de domínio. Isto não significa, porém, a realização utópica de um mundo onde não existam mais violências e guerras. Significa, diz Napoleoni,
“não aceitar uma economia que, para funcionar, tenha necessidade de um alto número de desempregados, um mercado que pretenda absorver todas as relações e as funções da vida social, estabelecendo duramente as condições de existência e o preço…” (66).
Trata-se, ao invés, de:
“empreender uma ação reformadora que vise ampliar a área não julgada pelo dinheiro e não dominada pelo mercado. A poesia, a cultura, a arte, a gratuidade, a invenção, os sentimentos, a comunicação, o jogo, a qualidade e a abundância da vida devem poder florescer também mesmo estando fora do mercado, e o tempo deve tornar a valer para cada um de nós, ainda que não se traduza só em dinheiro. Isto implica estabelecer uma relação não conflituosa com a natureza,(…) assumir o controle da tecnologia, submetendo-a ao discernimento da sabedoria humana e política.(….). Trata-se de retomar vigorosamente o desenvolvimento, abandonando porém uma concepção puramente quantitativa e deformada do mesmo” (67).
Em síntese, considerado que os valores capitalistas, fortemente dinâmicos, para o desenvolvimento material do sistema são socialmente desagregadores, devemos não abandonar aquela reserva crítica em relação ao capitalismo que consiste em não entendê-lo e não aceitá-lo como um sistema ideológico acabado e totalizador (68). É por isso que devemos pensar e agir, também, a partir do outro do sistema.
“Já, na crítica à subjetividade burguesa, Marx pôs em campo o outro, como antagonista da abstração burguesa e de sua forma de domínio, mas também como expressão de uma estrada para a emancipação humana diversa e alternativa à liberdade idealista do homem concebido abstratamente. Para Marx, o outro é o proletário, justamente porque não tem nada a perder além de suas próprias correntes; o outro é aquele que não precisa da propriedade e do domínio para afirmar a própria individualidade; o outro é nada porque é nada mais que si mesmo e aspira somente a realizar a totalidade emotiva da própria especificidade humana. E não é arriscada a aproximação que Paul Zweig opera entre Marx (…) e Tocqueville, Schiller, Burckhardt e Nietzsche, que fundam na crítica ao conformismo, à desumanidade mecânica, à falsa moral, a recusa de reconhecer as barreiras mutiladoras deste mundo(….).Todo o saber de Marx é saber crítico porque é também saber do outro; é a introdução prática do ponto de vista da alteridade na ordem do mundo”(69). “A lição de Marx está na intuição de que o outro não está fora, em um outro lugar, mas dentro do sistema e todavia se projeta como uma longa sombra além e fora dos confins determinados…”(70). “O outro deve ser procurado na expropriação da individualidade emotivo-afetiva que se dá através da massificação e da homogenização das ações e das posições de cada um de nós…..O outro é o jovem prisioneiro da linguagem bloqueada do video; é todo habitante da cidade sem rosto; o operário que perde a cabeça na insignficância dos gestos repetidos (….); o profíssional usado como terminal do programa do computador; a mulher que sofre a mortificação da diferença na violência da lógica possessiva” (71).
Passamos da época da secularização e do desencantamento (Weber) à época do “cinismo”. Com efeito, a morte do comunismo e o triunfo do mercado foram aplaudidos como a realização da razão universal.
“Pouco importa que as grandes concentrações do terceiro capitalismo estejam esvaziando a soberania dos Estados e a libertade de informação, consignando muitas vezes áreas geográficas a poderes criminosos. O que conta é somente esta grande semplificação da proclamada complexidade moderna dentro do paradigma universal da mercadoria e do dinheiro, o apagamento de toda resistência, e a dissipação de todo antagonismo que invoca uma outra racionalidade”(72).
Vivemos numa época de cinismo. Mas enquanto o cinismo antigo, o de Diógenes, era crítico do universalismo político de Alexandre Magno e era a extrema autodefesa contra a homologação helenista, este novo cinismo representa um instrumento ideológico da atual homologação. Com efeito, a época atual do novo cinismo é a dos sem nome, em que as cifras, as estatísticas, os números tomam o lugar dos nomes. A marginalização da pessoa é essencialmente marginalização da palavra e as estratégias do poder são também estratégias discursivas que consentem serem reconhecidas só ficando vinculadas ao seu “código de referência”; que de fato obstruem o acesso a outros discursos vetando a tomada da palavra a quem quer que seja (73).
“A crítica de Marx à vulgaridade da economia política, à filosofia hegeliana do direito público, (…) é a crítica à onipotência do Sistema.(…) Marx recolocou em campo contra a remoção idealista (hoje contra a fuga verbal e contra o cinismo da indiferença) a materialidade da produção e da reprodução da vida.(….) Está hoje em jogo o recalque de Marx: o direito a falar da vida na concretude das exigências fundamentais que os indivíduos em carne e osso experimentam em suas relações recíprocas” (74).
A atualidade dum retorno crítico de Marx e de sua tradição, nesta época de cinismo, está justamente na urgência de resgatar este direito e de conservar e garantir a alteridade.
Notas Bibliográficas
1) H. Assmann, Teologia desde la praxis de la liberacíon, ensayo teológico desde la Anérica dependiente. Salamanca, Sígueme, 1873.
2) C. Boff, Teologia e Prática, teologia do político e suas mediações. Petrópols, Vozes, 1978.; G. Guitiérrez, Teologia da Libertação. Petrópolis, Vozes, 1976. pp. 18 à 25; 32 à 45.
3) L.A. Gomes de Souza, Classes populares e igreja nos caminhos da história. Petrópolis, Vozes, 1979, pp. 146 à 162.; L.G. de Souza Gomes, Evolução política dos católicos e da igreja no Brasil. Petrópolis, Vozes, 1979, pp. 30 à 51.
4) J.F. Regis de Moraes, Os bispos e a política no Brasil. São Paulo, Cortez, 1982.
5) C. Boff, “A infuência política das Comunidades Eclesiais de Base”, in: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974, N. 4.
6) G. Gutiérrez, op. cit., pp. 78 à 83.
7) B. Hettne, Le teorie dello sviluppo e il terzo mondo. Roma, ASAL, 1986, pp. 63.
8) Idem, p.64: J. C. Portantiero, “O marxismo latino-americano”, in: E. Hobsbawm (org.), História do marxismo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, Vol. XI, pp. 333-354.
9) L. Bordin, O marxismo e a Teologia da Libertação. Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1987, pp. 68-71; 132-142.
10) F. Castillo, “Teologia de la liberación y teoria de la dependencia”, in: Teología de la liberación y realidad chilena, CEDM, Rehuc, Santiago, 1989, p.17.
11) B. Hettne, op. cit. pp. 73,77,79.
12) T. Dos Santos, “The Structure of Dependency”, in: American Economic Review, 60, 1970, n. 21, p. 231.
13) A. Gunder Frank, Reflections on the world economic crisis. M R – Press New York, 1981, p. 27.
14) R. M. Marini, América Latina, dependência e integração. São Paulo, Ed. Brasil Urgente, 1992, p. 99.
15) id. p. 101.
16) T. Dos Santos, “A Teoria da Dependência: um balanço histórico e teórico”, in: F. Lópes Segrera (org.), Desafios da Globalização, Uma Homenagem a Theotonio Dos Santos (em via de publicação).
17) F Castillo, op. cit. pp. 16,17.
18) F. Hinkelammert, “La teologia dell’imperio”, in: Revista Amanecer, Reflexion Cristiana en la Nueva Nicaragua, Celleno – Viterbo, Centro Comunitario, via Roma n. 5, Edizione Italiana – n. 1, Gennaio-Febbraio 1988; G. Selser, Los Documentos de Santa Fé I y II, México, Universidad Obrera de México, 1990.
19) R. M. Marini, op. cit. p.47.
20) Id. p. 48.
21) Id. p. 50.
22) Id. p. 53.
23) Id. p. 54.
24) Id. p. 62.
25) Id. pp. 62, 63.
26) P. Barcellona, Il capitale como puro spirito, um fantasma si aggira per il mondo. Roma, Editori Riuniti, 1990, pp. 8 à 18.
27) Id. p. 30.
28) Id. pp. 35 à 37.
29) Id. pp. 97 à 110.
30) P. Barcellona, L’egoismo maturo e la follia del capitale. Torino, Bollati Boringhieri, 1988, pp. 35 à 42.
31) P. Barcellona, Il capitale como puro spirito, op. cit. pp. 137 à 139.
32) Id. p. 100.
33) Id. pp. 123,124.
34) H. Assmann, “Teología de la liberacion: mirando hacia al frente”, in: Revista Latinoamericana de Teología, 34, enero-abril, 1995, San Salvador, p. 94.
35) Id. pp. 93,94.
36) Id. p. 97.
37) Id.
38) L. Boff, “Ética Mundial e Processo de Mundialização”, in: L. Miranda Hühne (org.), Ética, Rio de Janeiro, Uapê, 1997, p. 71.
39) Id. p. 72.
40) Id. p. 40.
41) H. Assmann, op. cit. p. 102.
42) Id.
43) Id.
44) Id. p. 101.
45) Id.
46) J. Y. Calvez, “Que Queda del marxismo?”, in: Christus, Teologia y Ciencias Humanas. Cuernavaca, n. 653, 1992, p. 11.
47) Id. pp. 13,14.
48) Id. p. 14.
49) E. Balducci, L’uomo planetario. Firenze, Ed Cultura della pace, 1990, pp. 170, 171.
50) Id.
51) E. Balducci, La terra del tramonto, saggio sulla transizione. Firenze, Ed Cultura della pace, 1992, pp. 194 e 215.
52) E. Morin, Meus Demônios. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997, p. 120.
53) E. Fromm, Do amor à vida (palestras radiofônicas organizadas por Hans Jürgen Schultz). Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1992, p. 103.
54) Id. pp. 103, 104.
55) A. Neher, Chiavi per l’ebraismo. Genova, Marietti, p. 57.
56) E. Balducci, La terra del tramonto, op. cit. pp. 125 à 128; E. Balducci, Il Cerchio che si chiude ( Intervista autobiografica a cura di Luciano Martini). Genova, Marietti, 1986,pp. 134 e 151.
57) C. Napoleoni, Cercate ancora, lettera sulla laicità e ultimi scritti (introduzione e cura di Raniero La Valle). Roma, Editori Riuniti, 1990, pp. xxv e 61.
58) Id. pp. 74 e 11.
59) Id. p. 38.
60) Id. pp. 39, 40.
61) Id. p. 43.
62) Id. p. 48.
63) Id. pp. XXIX e 167.
64) Id. pp. XXIX e XXX.
65) Id. 149.
66) Id. 162.
67) Id. pp. 162, 163.
68) Id. p. 145.
69) P. Barcellona, L’egoismo maturo e la follia del capitale, op. cit. p. 142.
70) Id. p. 144..
71) Id. p. 145.
72) P. Barcellona, Il ritorno del legame sociale, Bollati Boringhieri, Torino, 1990, p. 7.
73) Id. pp. 8, 9.
74) Id. pp. 10, 11